Afortunadamente, entre nós o felino nunca alcançou status de iguaria ou quitute regular. Segundo Câmara Cascudo, sempre o saborearam "por estúrdia, divertimento, curiosidade". E, naturalmente, por malandragem. Antigos moradores do Rio de Janeiro recordam dos vendedores de espetinhos assados que até a metade do século 20 se multiplicavam nas esquinas da cidade quando se aproximava o carnaval. A clientela os comprava como se fossem de boi. Entretanto, eram de gato, ou seja, de resto da folia. Na época, fazia-se tamborim com o couro do felino. A carne que sobrava virava churrasquinho. O jurista fluminense Antão de Vasconcellos, no livro Memórias do Mata-Carochas (Companhia Portuguesa Editora, Porto, 1926), conta as peripécias de um grupo boêmio da Universidade de Coimbra, em Portugal, onde ele se formou no século 19, conhecido por "gaticidas". Eram rapazes de boas famílias que caçavam felinos em intervalos de cinco, seis dias para assar no forno. Comiam a iguaria em farras noturnas, embaladas pelo vinho da Bairrada. Vasconcellos descreve as complicadas táticas aplicadas na captura. Preferia-se o gato preto, considerado "mais saboroso". Rejeitava-se o vermelho, o amarelo e o branco. "A pele era atirada à porta do dono, para não perder tudo, visto que dela se faziam magníficos barretes para o inverno", conta.Estudantes boêmios de universidades brasileiras imitaram os portugueses. O médico Mário Lúcio Alves Baptista, de Belo Horizonte, que na década de 60 cursou a Faculdade Federal de Medicina do Triângulo Mineiro, em Uberaba, testemunhou a praxe entre universitários do tempo. Os colegas de escola e os alunos vizinhos de odontologia e direito comiam gato nas noitadas de farra. Em Uberaba, o felino que se atrevesse a entrar no quintal da República dos Bacantes, por exemplo, era imediatamente perseguido. Alves Baptista aceitou o convite para participar de um desses festins. Mas, quando viu a cabeça de gato na assadeira, não teve coragem de experimentar "o acepipe".
Os "gaticidas" de Coimbra e Uberaba julgavam inadequado cozinhar o animal em água, pois eliminaria o seu característico sabor de caça. Em outros lugares, o método variava. A voz do povo ibérico garantia que os taverneiros do "caminho de francês" pensavam diferente. Faziam-no frito, ensopado, guisado ou refogado, à base de uma bebida alcoólica ou não, temperado com alho, cebola, açafrão, azeite e vinagre. No século 19, o escritor e folclorista catalão Vicente Joaquín Bastús y Carrera, em um dos três volumes do livro La Sabiduría de las Naciones o Los Evangelios Abreviados (Livraria de Salvador Manero, Barcelona, 1862-1867), aconselhou um esconjuro para proteger o peregrino da fraude. Diante do prato que chegava à mesa, ele devia recitar o verso: Si eres cabrito,/ manténe frito;/ si eres gato,/ salta del plato. Diz a lenda que a magia funcionava. Se a carne fosse de gato, o animal ressuscitava e saía disparado.
Em quinta-feira, 20 de agosto de 2009
por Dias Lopes, jadiaslopes@terra.com.br, http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos+paladar,se-for-gato-que-salte-do-prato,3203,0.shtm


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